quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Cem anos sem solidão!

Cem anos sem solidão!
Antonio Nunes de Souza*

Somente aproveitando o título de uma grande obra literária, fazendo uma pequena e justa variável corruptela, para poder dissertar sobre a vida de alguém que muito significa para mim. Aliás, não posso ser ego- centrista, dizendo “para mim”, quando na verdade esse ser bendito conseguiu e consegue ser especial para todos que têm a felicidade de conhecê-lo.
Mas, conviver de perto, acompanhar sua trajetória e ver crescer toda sua magnífica prole como se a ela pertencesse. Ah! Isso é um privilégio de poucos! E eu, graças a Deus, sou um desses poucos que há sessenta anos convivi e convivo, estando perto ou distante. Quando perto a tenho em meus braços, quando longe a tenha no coração e em meus pensamentos.
As fatalidades e acidentes de percursos que atravessam nossos caminhos, muitas vezes nos tiram algumas coisas parecendo estar querendo nos castigar, mas, divinamente, nos presenteiam com outras tão maravilhosas, que nos fazem esquecer qualquer desdita, por mais desagradável que tenha sido. E comigo não foi diferente!
Cheguei a Santo Amaro, ainda criança com meus cinco a seis anos de idade e, pela graça de Nossa Senhora da Purificação (talvez o primeiro milagre que Ela me concedeu), foi morar quase vizinho da família Veloso. E, sorrateiramente, como todas as crianças fazem, fui me achegando, achegando, achegando, até ser acolhido com muito carinho naquela imensa casa, que para mim parecia um lindo castelo, já que era morador de uma modesta casa.
Lembro-me como se hoje fosse, meu deslumbramento com as novidades que descortinaram em minha mente ignorantemente infantil. Passava horas vendo Minha Jú manipulando o telégrafo, que me parecia uma mágica, quando soube que aquelas batidinhas se transformavam em palavras. Olhava para ela com tanto respeito pelo seu magistral poder, que, algumas vezes, ficava assombrado imaginando ser ela alguém sobrenatural. E era! Não pelo trabalho mágico que executava, mas, exatamente, pelo carinho e meiguice que tratava todos.
Aos poucos, com minhas intromissões e pelas aberturas que encontrava, fui passando a ser um tímido e modesto morador eventual. Pois, assim que acordava, saia em disparada para a casa dos Velosos.
Ganhei, por conta própria, apossando-me por necessidade e carência, uma série de irmãos maravilhosos, que preencheram e até hoje preenchem, todos os vazios que despontam em nosso peito nas adversidades da vida. Como eram e são importantes para mim!
Nicinha (Nice como a chamo, enchendo-a de beijos quando nos encontramos), deixava-me fascinado quando dedilhava o piano com maestria, solando os boleros de outrora e os sucessos da época, deixando-me embevecido por estar ao lado de uma artista dominadora de um instrumento tão grande, que somente agora eu estava conhecendo. Por ser a mais velha, sempre era cheia de determinações. Dava-me milhões de carões! Uns pelo seu nervosismo, mas, a maior parte, pelos meus merecidos desatinos.
Clara Maria (que até hoje chamo de Kalite) sempre e continua sendo um doce de pessoa. Reservada, um pouco tímida, falava somente o essencial. Até quando tinha que ser rígida ela tornava-se meiga para conseguir seus intentos. Até hoje continua sendo o SOS de todos.
Rodrigo (esse meu irmão do coração), desde sua mais tenra idade já tinha as características de ser o que é hoje: O rei da solidariedade! Ainda não conheci ninguém que se preocupasse tanto em servir nas horas mais precisas, que essa especial pessoa. Está sempre pronto para aconchegar todos que dele necessita, fazendo o bem sem olhar a quem. É tão especial que tem vários nomes; Dão, Digão, Digo, etc., e muitos outros dados pelos amigos que lhe querem bem verdadeiramente. Quero-lhe um bem sem limites!
Maria Isabel a Mabel de todos é a minha Bel. Já quase mocinha, era uma guardiã dos caçulas. E eu, infiltrado no meio, sempre obedecia suas ordens e ouvia seus conselhos e orientações. Falava muito, esbravejava, porém, já demonstrando sua inteligência e capacidade que a transformaria na mulher culta que hoje é. Tenho-lhe o maior respeito!
Roberto José, o Bob da família e de todos os amigos, diferenciava-se um pouco de nós pela sua postura, comportamento, classe e interesse cultural que, mesmo com idade relativamente igual, eu o olhava, humildemente, como se ele já fosse um rapaz. Porém, nunca deixamos de ser muitos ligados na infância, puberdade e até hoje em nossa maturidade. Sua diferença de ser e sua personalidade forte e marcante, fez dele alguém que não se pode deixar de querer muito bem e dedicar grande admiração.
Caetano, esse tem tantos nomes carinhosos e diminutivos que seria impossível enumera-los, mas, eu especialmente ou somente, o trato de Cacum. Foi o primeiro dos Velosos que me acolheu no coração. Éramos totalmente diferentes e ainda somos nas qualificações. Enquanto ele, precocemente, sabia de mil coisas e tinha tendências culturais e artísticas, na minha cabeça só passavam as frivolidades e banalidades da vida. Certamente nos dávamos tão bem por ser ele alguém misteriosamente especial e eu um ser comum e banal. Complementávamos-nos fazendo uma constante permuta de sabedorias: Ele me demonstrando e ensinando como eu deveria ser e eu lhe ensinando como ele não deveria ser. Nessa simbiose através de uma amizade quase siamesa, nunca nos separamos ou deixaremos de nos querer eternamente. Algumas vezes eu me pego perguntando: Por que Caetano gosta tanto de um cara como eu? E imagino que ele também se pergunte: Por que será que eu gosto tanto de Antonio Manteiga? Tudo isso pode ser inexplicável para muitos, mas, para mim, pelo tempo que existe essa afetividade sólida de amigos/irmãos, a cumplicidade na infância, puberdade e maturidade, digo ousada e pretensiosamente, que sinto que somos uma única pessoa.
Maria Bethânia, que também carrega uma série de nomes carinhosos, a conheci uma criancinha magrinha e mimosa, dengada por todos por ser a caçulinha da casa, nascida depois do pretenso último, que era Caetano. Pouco brincamos na infância pela diferença de idade muito acentuada, Mas, com a passagem do tempo, brincávamos muito e brigávamos como cão e gato, graças a sua personalidade forte e a minha natureza pirracenta. Porém, no fim tudo ficava bem sem maiores rancores. Transformou-se em uma mulher maravilhosa, elegante, com classe, personalidade, beleza e charme, deixando-me apaixonado por ela até hoje. Juro que se fosse seu desejo, teria me casado com ela, esquecendo até o incesto que estava cometendo. Sempre a amarei muito! Essa questão dela cantar maravilhosamente, para mim é apenas mais um detalhe. Aprendi a gostar dessa família quando todos só eram grandes artistas na arte de querer bem.
A menina Irene, que tive o privilégio de ir à comitiva que foi buscá-la na maternidade, era a criança que passeava em nossos colos, todos se derramando em carinhos e afetos por aquela menina que veio enfeitar mais ainda essa bendita família.
Zezinho Veloso, o seu Zezinho, que talvez o próprio correio tenha aprendido a se comunicar graças a ele, foi o patriarca de uma família fantástica, que é admirada e elogiada por todos que têm a oportunidade de conhecê-la. Homem de pouco riso, mas de muito ciso. Respeitado na comunidade pelo seu desempenho profissional e familiar. Amou e apoiou todos os filhos em todas as circunstancias. Deixou muitas saudades, assim como, bons exemplos. Tive meio século de convivência com ele, que jamais esquecerei nos mínimos detalhes, principalmente pela sua herança de uma prole invejável, que só nos dá alegria e felicidade.
Escrevi tudo isso para chegar à pessoa que faz jus ao título dado a essa crônica:
D. Cano (Mãe Cano, Canôzinha, etc.), mulher que pode ter o privilégio de bater no peito e colocar as mãos para o céu, dizendo alto e bom som que cumpriu o seu papel na terra e continuará cumprindo até seus últimos dias.
São cem anos sem solidão, tendo em sua volta milhares de pessoas que a amam e admiram, graças suas obras comunitárias e religiosas, dando lições de solidariedade em todos os seus atos, não medindo esforços, mesmo lutando contra as restrições normais da idade, com o intuito único de servir.
Quando a conheci ainda era uma menina (trinta e nove anos), quase a idade dos meus dois filhos. Sem dúvida sou um grande privilegiado por ter acompanhado toda sua bonita trajetória, de perto ou longe, sempre sabendo o andamento de todas as coisas. Tenho orgulho de ser esse adotado (graças minha própria ousadia de intruso), participando e fazendo parte dessa festividade de “Cem Anos Sem Solidão”.
Parabéns D. Cano, Canôzinha, Mãe Canô, por tudo que você fez e faz por todos nós, desafiando esse “tempo de cóleras”, para estar viva, lúcida e feliz para nos dar muita felicidade.
Um grande beijo do seu filho,
Antonio Manteiga

*Escritor (Vida Louca – ansouza_ba@hotmail.com)

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