domingo, 24 de abril de 2016

Ironias do destino!



                                                 Antonio Nunes de Souza*
                                                                                                   Sentado, as lágrimas desciam pelo rosto ao ouvir uma frase forte e comovente que, num passado distante, a ouvi com entonação de carinho e preocupação e encontrava-me alegre e feliz. Fiz uma retrospectiva, projetando em minha mente um filme que não gostaria de tê-lo assistido:
-Pâmella Mary, saia da lama menina! Falou a mãe enquanto enxaguava na bacia a roupa de lavagem de ganho.
Sorri, internamente, quando ouvi o nome da pequena criatura que, sentada numa poça d’água imunda, brincava tranqüilamente como se fosse uma piscina. Analisei como é interessante e peculiar entre as pessoas pobres, colocar nomes exóticos e estrangeiros em seus filhos, procurando enriquece-los de alguma forma, imitando os nomes comumente usados nos filmes e novelas da tv. Mais engraçados ainda são os acréscimos de letras para dar maiores ênfases, muitas vezes tornando ridículas as pronuncias e as combinações. Pâmella Mary era um exemplo típico desse fato!
-Bom dia dona Mariana!
-Bom dia, Dr. Márcio! Eu estava esperando o senhor na parte da tarde, por essa razão não preparei a menina.
-Infelizmente surgiu um compromisso inesperado para hoje à tarde, e resolvi vir logo pela manhã. Mas, como a senhora não tem telefone, não tive condições de avisar. Porém, pode ficar tranqüila que aguardarei de bom grado a preparação da criança.
Enquanto mandava que eu sentasse em um tamborete com as pernas meio bambas, Mariana desocupou a bacia estendendo as roupas no varal improvisado em plena ruela da favela, enchendo-a de água e, em seguida, pegou a menina pelo braço e a colocou dentro, antes porém, lavou os sujos pés que estavam enfiados na lama fétida do fundo da poça.
Conforme havíamos combinado, eu estava ali para levar a menina, adotando-a extra-oficialmente, pois estava casado há 10 anos e não consegui ter um filho em função de um problema genético da minha mulher. E fomos informados que dona Mariana não tinha condições de criar a menina e estaria disposta a dá-la para um casal que fosse respeitável e lhe desse uma boa educação. Ela foi a nossa casa, nos conheceu, viu que tínhamos boas intenções e concordou em nos dar a criança, mesmo sem as burocracias da justiça. Como a menina tinha dois anos e não era registrada, nós a registraríamos como se fosse nossa própria filha e tudo ficaria na mais completa tranqüilidade e segredo para ambos os lados. Pretendíamos dar algum dinheiro para Mariana como uma compensação por estar nos dando uma felicidade ímpar, mas ela recusou-se categoricamente, alegando que, somente em estarmos dando conforto e segurança para sua filha, representava a maior das fortunas que ela poderia ter na vida. Mas, mesmo assim, prometemos ajuda-la em alguma ocasião que fosse preciso.
Não ficamos temerosos com relação a alguma reclamação posterior do pai de Pâmella, pois se tratava de um individuo que apareceu na favela tempos atrás, sem documentos, eiras nem beiras, nenhum parente e fazia biscates diversos para sobreviver. Mariana o conheceu num pagode, ficou, e aconteceu. Uma semana depois desse fato, ele foi atropelado e morto numa rua da zona norte. Mariana só veio saber, através dos comentários habituais da favela. Entretanto, ninguém sabia desse rápido envolvimento e nem ela percebera que já estava grávida. Quando descobriu, deu prosseguimento a sua gravidez, guardando segredo de quem era o pai, pois, naquele ambiente, ninguém tinha preocupações ou causava estranheza alguém aparecer de barriga.
-Pronto Dr. Márcio. Aqui está sua bonequinha! Coloquei nesse saquinho de mercado algumas roupinhas, embora o senhor tenha dito que já tinha em casa um enxoval completo no quartinho dela, que tive a felicidade de ver. Ela disse isso escondendo com um sorriso os olhos lacrimejantes de uma mãe que está entregando um pedaço de si.
Dei-lhe um abraço, agradeci mais uma vez, e alegre e comovido carreguei a criança nos braços, partindo para o carro que estava um pouco distante, em função do caminho do seu barraco ser intransitável, onde Eunice, minha esposa, me aguardava, pois não queria ver a cena da despedida. Mas, nada aconteceu que fosse dramático.
Pâmella não esboçou nenhuma reação e nem estranhou as pessoas que a estavam levando-a O passeio de carro, as novas paisagens e a variação de novidades, eram suficientes para faze-la feliz e nem lembrar do seu barraco ou da própria mãe.
Tomamos todas as providencias combinadas e normais para perfilha-la e criar a menina dando-lhe educação, carinho e amor. Não mudamos o seu nome, como uma homenagem ao gosto(?) da sua mãe.
Os anos passaram, Pâmella terminou o curso secundário, fez vestibular e passou a cursar a faculdade de arquitetura. Quanto à dona Mariana, curiosamente, após dois meses que havíamos trazido a menina, voltamos ao seu barraco e não a encontramos. Seus vizinhos não souberam nos dar nenhuma notícia, como também, nesses 19 anos, jamais voltamos a nos falar ou ter alguma referencia do seu paradeiro. Em função disso, jamais contamos nosso segredo para a menina.
Mas, como muitas vezes o destino nos prega peças nem sempre agradáveis, Pâmella começou um namoro com um rapaz que era usuário de drogas e, infelizmente, levou-a para o vício. E, como comumente acontece, quando percebemos já era tarde. Ela começou a ser agressiva, passar dias fora de casa, deixou de freqüentar a faculdade, além de beber e fumar, iludida como muitos jovens, achando que isso é que era felicidade.
Tentamos de todas as maneiras contornar a situação, mas, somente pode-se ajudar, quem realmente deseja ser ajudado. E ela nada queria e não aceitava mais nossos carinhos e atenções, terminando por ir morar com o tal indivíduo em um quartinho de uma pensão de quinta categoria.
Depois de meses nessa vida, onde não tínhamos nenhuma notícia, hoje ela apareceu aqui em nossa casa, com uma aparência horrível, olheiras, mal vestida e, cinicamente, veio nos pedir, quase exigindo, dinheiro para comprar drogas, pois estava em tempo de enlouquecer e, caso não tomasse uma dose iria morrer de dores por todo corpo.
Foi nesse instante que ouvi a fatídica frase, desta feita repetida por minha mulher, com muita compaixão, lágrimas e amor, que me fez lembrar toda essa triste história:
-Pâmella Mary, saia da lama menina!

*Escritor – (Membro da Academia Grapiúna de Letras de Itabuna - antoniodaagral26@hotmail.com)
                                                                                                                                             

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