quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Como me tornei um pastor evangélico!



                                                                                              Antonio Nunes de Souza*

Com o tempo de vacas magras, situação difícil, emprego pior ainda, eu, como muita gente, estava passando a maior merda do mundo. Já havia procurado algo para fazer, mas, do jeito que a cidade estava não havia nada que pudesse me dar um troco para o feijão de cada dia. E devido minha capacidade, não me sujeitaria a um trabalho insignificante e abaixo das minhas qualificações. Dois defeitos trágicos: Pobre e orgulhoso!
Como todo nortista quebrado, pensei logo em ir para São Paulo, pois lá o filho chora e a mãe não vê, porém sempre aparece algo para defender o rango, e dormir, qualquer quarto de pensão serve.
Estava sentado no banco do jardim, pensando como conseguir o da passagem, quando apareceu um colega de infância que há muitos anos havia desaparecido da cidade e ninguém imaginava seu paradeiro.
-Você é Chico Cabeludo?
Quando ouvi aquela pergunta, fui lá no baú do passado, pois esse apelido eu peguei nos anos setenta quando era moda mundial usar vastas cabeleiras, e fui o primeiro a lança-la em nosso lugarejo.
-Sou sim. E você, se não me engano é o Renato Gasolina, não é?
Ele deu uma risadinha e assentiu com a cabeça. Talvez por ter me lembrado também do seu apelido, ganho porque ele tinha a mania de pegar ratos, colocar gasolina, tocar fogo e ver o pobre animal correndo assando até cair morto. Essa mórbida diversão fazia com que ele soltasse enormes gargalhadas até o rato estourar a barriga e cair morto. Imagine como era perverso esse sacana!
Apertamos as mãos, começamos a conversar, e ele disse que agora era Pastor de uma igreja que havia criado em Governador Valadares, já contando com duas filiais nos bairros periféricos. Essa vinda a nossa terra natal era exatamente para falar comigo, pois tinha sabido que eu não estava bem e, como sempre fui inteligente, culto e bem falante, poderia tomar um rápido curso de bíblia com ele e, com 30 dias, estaria apto para ser um novo Pastor da Igreja da Salvação Divina (esse era o nome da sua seita evangélica). Ele precisava de um homem competente, conhecido dele e confiável.
-Realmente eu estou nas pequenininhas, mas, ser pastor evangélico nunca passou pela minha cabeça e acho que não me sairei bem. Eu, se não sou um ateu, também não sou adepto de religiões, pois as dúvidas estão sempre a me perseguir.
-Claro que vai se sair bem, irmão! Eu também pensei a mesma coisa quando o Pastor Inácio me convidou para sua primeira igreja e, dois meses depois, quando  tinha somente 10 dias de pregações sozinho, irmão Inácio sofreu um acidente fatal e tive que assumir todas as responsabilidades e dar continuidade aos trabalhos. Hoje, dois anos depois, já estou com três igrejas e vou abrir a quarta contando com você.
-Bem! Digamos que eu me adapte, como funciona a parte financeira com relação ao que vou ganhar?
-Segundo os nossos estatutos, o pastor das nossas igrejas, como em todas as outras do mesmo seguimento, fica com 40% dos dízimos e a responsabilidade de toda manutenção no templo. Mas, para isso, os irmãos sempre colaboram com algo mais e, principalmente, com a mão de obra grátis, em nome de Jesus. Nesse bairro que estamos preparando as instalações, imagino que vai dar para você tirar, já no início, uma média de R$ 5 a 6.000,00 (cinco a seis mil reais) mensais. Porém, a depender do seu trabalho, ultrapassará os dez mil, fácil, fácil. O povo nunca falha para nossos pedidos em nome de Jesus.
Juro que quase me cagava de emoção quando ele falou quanto eu poderia ganhar. Na merda que andava, seria capaz de dar banho numa cascavel, escovar os dentinhos e colocar uma pijaminha pra ela dormir, somente para ganhar o jantar. Por esse dinheiro, não vou deixar um pecador na face da terra, em nome de Jesus ou de quem quer que seja.
-Você quer uma resposta definitiva quando? Perguntei com um brilho nos olhos, demonstrando que já me considerava um aprendiz de teologia.
-Eu vim aqui só pra isso e, se você concordar, seguiremos amanhã cedo para Valadares, pois, quanto mais rápido você começar a estudar e gravar a bíblia na mente será melhor para todos, uma vez que os fieis lêem a bíblia todos os dias, não entendem nada e nós é que temos que dar as explicações. E, o que não entendemos também, inventamos qualquer história cheia de metáforas, eles continuam sem entender nada, mas, para que não deixem transparecer que são burros, agradecem em nome de Jesus e vão embora com as mesmas dúvidas, achando que devem estudar mais. Nessa hora você deve dar aquele sorrisinho e dizer; Filho, interpretar o livro sagrado requer anos e anos de estudo. Mas, em nome de Jesus, um dia você chegará lá!
Arrumei minhas melhores roupas, alguns livros e na manhã seguinte já estávamos seguindo no carro de Renato. Aliás, Pastor Renato, pois, ele determinou que a partir daquele momento, nosso tratamento seria como Pastor Renato e Pastor Francisco. Isso para ir criando um hábito, pois quando lá chegássemos eu seria apresentado como tal e não poderia haver escorregões que pudessem gerar desconfianças. Apenas, para os fieis, seria dito que eu passaria 30 ou 60 dias de retiro profundo, pois estava vindo de outro pais especialmente para nossa igreja e seria necessário essa penitência com reflexões solitárias ( na verdade seria meu período de aprendizagem. E, como eu já havia morado uma época na Califórnia, poderia me sair bem quando fosse perguntado a respeito da minha vida lá fora. E para dar um toque maior de veracidade, eu falava fluentemente o inglês.
Chegamos as 22:00 hs. em Valadares, Renato levou-me para uma casa de campo que ele tinha nos arredores da cidade, lugar super confortável, onde fui recebido por uma senhora bem velhinha que fazia às vezes de caseira, cozinheira e confidente de Renato.
-Dona Maroca esse é o Pastor Francisco que vai ser o responsável pela nossa nova igreja. Ele ficará hospedado aqui durante o seu retiro de estudos para iniciar a missão. Contamos com a sua ajuda e discrição nessa preparação, já que a senhora conhece a Bíblia como ninguém e sabe todos os esquemas da nossa igreja, pois vem trabalhando conosco desde que o Pastor Inácio implantou seu primeiro templo religioso anos atrás.
-Muito prazer, meu filho! Seja bem vindo em nome de Jesus!
-Amém irmã! Obrigado pela acolhida em nome de Jesus!
Quando olhei para o lado, Renato disfarçava para não dar uma gargalhada, por ver minha primeira falação como um verdadeiro irmão.
Ele seguiu para sua casa na cidade e eu fui tomar um banho, jantei um pratinho rápido que D. Maroca fez e fui direto para a cama descansar, pois, no dia seguinte, começaríamos os estudos que, com certeza, não seriam fáceis.
Acordei as 06:00 horas com um monte de livros no meu criado mudo, provavelmente colocados por D. Maroca para que eu começasse logo cedo meus afazeres. Levantei, escovei os dentes, lavei o rosto e fui para a sala onde já havia na mesa um gostoso café com frutas e iguarias que há muito eu não saboreava.
-Bom dia Pastor Francisco! Tome o seu café e pode ir cuidar dos seus estudos e reflexões. Qualquer dificuldade que o senhor tenha, pode me chamar que estarei sempre às ordens em nome de Jesus.
-Obrigado irmã! Pode ficar tranqüila que estou sentindo-me à vontade e procurarei incomodá-la o mínimo possível.
Voltei para o quarto e sentei-me em uma escrivaninha, peguei a Bíblia Sagrada e comecei devora-la com a maior atenção possível, procurando adaptar-me aquele português casto e as citações e colocações verbais não usuais em nossos dias.
Os dias foram passando sem que eu fosse até a cidade, pois se fazia necessário que, quando fosse apresentado aos irmãos já tivesse postura e conhecimentos para angariar a confiança necessária, demonstrando ser um verdadeiro e competente ministro da igreja. Renato vinha diariamente visitar-me no início da noite, fazendo-me perguntas e explicações sobre os cultos e pregações. E D. Maroca, com a máxima boa vontade, durante o dia tirava minhas pequenas dúvidas nas interpretações de alguns versículos. Percebi que em algumas situações ela ficava meio perdida e começava a me enrolar com frases filosóficas. Nessas horas eu me lembrava das palavras de Renato com relação a atender os irmãos, mesmo os deixando confusos e pensando que o assunto está além dos seus conhecimentos e das suas imaginações. Maroca aprendeu bem essa lição, mas, eu não engolia essa farofa. Agradecia, porém me virava para encontrar a resposta certa.
O fato é que com 28 dias já estava com a Bíblia lida e relida por diversas vezes e, em nome de Jesus, eu conhecia a história religiosa de Adão a Bispo Macedo, passando por todos os papas, bispos e cardeais, discípulos, seguidores, apóstolos, profetas, hereges, etc.
Cafarnaum, Jericó, Jerusalém, Judéia, Roma, Egito e outras plagas pareciam que eu já tinha até morado por lá. Sabia decorado e salteado até os assentamentos desérticos das fugas. O mar vermelho era como se tivesse surfado pelas suas águas antes mesmo de Moisés abrir a passagem salvadora. Estava sentindo-me apto e competente para fazer uma pregação e deixar meus irmãos de bocas abertas e impressionados em meu nome e no nome de Jesus. Se duvidasse eu estava capaz de recitar o Novo e o Velho Testamento de traz pra frente e de frente pra traz. Já sentia tanta raiva do Satanás, que se me deparasse com ele, encheria de porrada e o mandaria de volta para os quintos dos infernos. Até Renato, ou melhor, Pastor Renato ficou impressionado com minha desenvoltura, porém ele sabia que eu era fera quando me dedicava a fazer algo.
Finalmente foi marcado o dia para minha apresentação oficial. Pastor Renato enfeitou lindamente a sua igreja, reuniu todos os irmãos da sua paróquia e das outras e, à noite, com uma lotação de mais de mil fieis, fui chamado à frente, exposto e apresentado como o mais novo Pastor da Igreja da Salvação Divina, responsável pelo novo templo que passaria a funcionar no dia seguinte, em nome de Jesus.
As Aleluias eram faladas e gritadas, mescladas de palmas e Glorias a Deus, além de outras frases religiosas que demonstravam a alegria da minha chegada.
Depois de alguns minutos, Pastor Renato pediu silencio e passou-me o microfone para eu dizer algumas palavras aos irmãos que, mesmo com o silencio reinante, ouvia-se ainda algumas louvações ao Senhor.
Pastor Renato havia preparado uma performance milagreira com um homem que se passaria por aleijado, que só conseguia andar, mesmo lentamente, com o auxílio de duas muletas e o amparo de mais alguém.
Cumprimentei a todos, agradeci a acolhida e comecei uma pregação com uma segurança como se fosse um velho e experiente pastor. Aí, como estava previsto, sai da multidão um homem arrastando-se amparado por pessoas que deviam ser familiares, gritando desesperadamente: Irmão! Irmão! Cure-me em nome de Jesus! Faça com que eu volte a andar e me livre dessa maldição de Satanás em nome de Jesus!
Pedi que trouxessem o homem até perto de mim e, como havia combinado com Renato, coloquei a mão esquerda em sua cabeça, solicitei que o ajoelhasse e comecei a fazer orações em voz alta e mandando o Satanás se afastar daquele irmão que pertencia a Deus e que ficaria bom em nome de Jesus. Quanto mais eu gritava minhas palavras sacro/santas, mas os irmãos gritavam aleluias, améns, vivas Jesus, etc.
Já começando há ficar um pouco nervoso pedi silencio a todos, fiz uma cara dramática e disse: Afastem-se todos dele que, em nome de Jesus, ele se levantará e se livrará dessa força do mal.
-Levante-se irmão! Levante-se em nome de Jesus, que Ele é mais poderoso que Satanás!  Força e fé em nome de Jesus!
Com o silencio que fazia na igreja naquele momento, podia-se ouvir o ruído da queda de um pedaço de algodão no chão. Todos passaram a olhar o homem com a maior expectativa sobre o que poderia acontecer.
O homem, fazendo um esforço sobre-humano, suor escorrendo pela testa e pelo rosto, suspendeu a perna direita até meia altura e... pela força que fazia, soltou um peido bem alto e fedido, provocando uma gargalhada geral dos fieis.
-Calma irmãos! Esse ruído e mal cheiro é o Demônio abandonando o seu corpo! Falei rápido tentando dominar a situação, devido o vexame que estava acontecendo.
-Não é não Pastor. Pela força que fiz me caguei todo em nome de Jesus!
-Não suportando mais aquela farsa que estava complicando minha vida logo no primeiro dia, já não pensei mais em nada e piquei a Bíblia com toda força na cabeça do sacana e disse;
Anda filho da puta pecador! Você já viu alguém se cagar em nome de Jesus?
Aí, para surpresa geral, o homem levantou-se com um salto e saiu correndo pela igreja a fora, deixando um rastro de merda e gritando bem alto: Vá bater em sua mãe, seu desgraçado. Vá bater na puta que lhe pariu!
E, como eu jamais esperava, todos se levantaram histericamente sacudindo as mãos para os céus, berrando assustadoramente: Milagre! Milagre! Milagre! Milagre em nome de Jesus!
Nesse momento, por ordem de Pastor Renato, o coral começou a entoar um hino de louvação, ele pegou o microfone e deu por encerrado o culto, quando eu, totalmente desnorteado, me retirava para a sala dos fundos, sobre as palmas e gritos de Aleluia dos fieis.
Fiquei alguns minutos esperando Renato, decidido a voltar para minha cidade depois desse desastre inesperado. Puto porque já estava cheio de planos com primeira arrecadação de dízimo.
Quando ele entrou e fechou a porta eu fui logo dizendo: Eu não quis dizer nada, mas sabia que essa droga de milagre logo no primeiro dia ia terminar dando em merda, como, literalmente, deu.
Calma, Pastor Francisco! Você foi genial!
-Pastor Francisco um cacete! Eu estou num estado de nervos retado, pois o homem não procedeu como tudo foi combinado e me deixou nervoso e embaraçado perante todos.
-Vou lhe confessar uma coisa. O rapaz que contratamos para o milagre teve que viajar e não veio. E eu só fiquei sabendo depois que lhe coloquei para falar e não pude avisá-lo. Aquele homem que apareceu é realmente aleijado e foi trazido por sua família pela primeira vez em nossa igreja, esperando que pudéssemos cura-lo. E você, energicamente, fez com que ele vencesse o medo psíquico e voltasse a andar. Eu me demorei um pouco para chegar aqui porque estava recebendo uma gorda doação dos seus familiares, que mandaram agradecer a sua poderosa força em nome de Jesus. E foram colocar gelo na cabeça do irmão que está andando muito bem, mas com um galo da porra na testa.
Ao ouvir isso, desmaiei e, quando voltei a mim, estava deitado em casa e na minha cabeceira, estava D. Maroca oferecendo-me um prato de sopa para refazer minhas forças.
Foi assim que me transformei em um pastor evangélico. Hoje, juntamente com o atual  Bispo Renato, comandamos dezenas de igrejas pelo Estado a fora, tudo isso em nome de Jesus!
Aleluia irmãos! O Senhor é meu Pastor e nada me faltará nunca mais!

*Escritor ( Do livro: Vida Louca - 2003)



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