Antonio Nunes de Souza*
Com
o tempo de vacas magras, situação difícil, emprego pior ainda, eu, como muita
gente, estava passando a maior merda do mundo. Já havia procurado algo para
fazer, mas, do jeito que a cidade estava não havia nada que pudesse me dar um
troco para o feijão de cada dia. E devido minha capacidade, não me sujeitaria a
um trabalho insignificante e abaixo das minhas qualificações. Dois defeitos
trágicos: Pobre e orgulhoso!
Como todo nortista quebrado,
pensei logo em ir para São Paulo, pois lá o filho chora e a mãe não vê, porém
sempre aparece algo para defender o rango, e dormir, qualquer quarto de pensão
serve.
Estava sentado no banco do
jardim, pensando como conseguir o da passagem, quando apareceu um colega de
infância que há muitos anos havia desaparecido da cidade e ninguém imaginava
seu paradeiro.
-Você é Chico Cabeludo?
Quando ouvi aquela
pergunta, fui lá no baú do passado, pois esse apelido eu peguei nos anos
setenta quando era moda mundial usar vastas cabeleiras, e fui o primeiro a
lança-la em nosso lugarejo.
-Sou sim. E você, se não me
engano é o Renato Gasolina, não é?
Ele deu uma risadinha e
assentiu com a cabeça. Talvez por ter me lembrado também do seu apelido, ganho
porque ele tinha a mania de pegar ratos, colocar gasolina, tocar fogo e ver o
pobre animal correndo assando até cair morto. Essa mórbida diversão fazia com
que ele soltasse enormes gargalhadas até o rato estourar a barriga e cair
morto. Imagine como era perverso esse sacana!
Apertamos as mãos, começamos a
conversar, e ele disse que agora era Pastor de uma igreja que havia criado em Governador Valadares,
já contando com duas filiais nos bairros periféricos. Essa vinda a nossa terra
natal era exatamente para falar comigo, pois tinha sabido que eu não estava bem
e, como sempre fui inteligente, culto e bem falante, poderia tomar um rápido
curso de bíblia com ele e, com 30 dias, estaria apto para ser um novo Pastor da
Igreja da Salvação Divina (esse era o nome da sua seita evangélica). Ele
precisava de um homem competente, conhecido dele e confiável.
-Realmente eu estou nas
pequenininhas, mas, ser pastor evangélico nunca passou pela minha cabeça e acho
que não me sairei bem. Eu, se não sou um ateu, também não sou adepto de
religiões, pois as dúvidas estão sempre a me perseguir.
-Claro que vai se sair bem,
irmão! Eu também pensei a mesma coisa quando o Pastor Inácio me convidou para
sua primeira igreja e, dois meses depois, quando tinha somente 10 dias de pregações sozinho,
irmão Inácio sofreu um acidente fatal e tive que assumir todas as
responsabilidades e dar continuidade aos trabalhos. Hoje, dois anos depois, já
estou com três igrejas e vou abrir a quarta contando com você.
-Bem! Digamos que eu me
adapte, como funciona a parte financeira com relação ao que vou ganhar?
-Segundo os nossos estatutos,
o pastor das nossas igrejas, como em todas as outras do mesmo seguimento, fica
com 40% dos dízimos e a responsabilidade de toda manutenção no templo. Mas,
para isso, os irmãos sempre colaboram com algo mais e, principalmente, com a
mão de obra grátis, em nome de Jesus. Nesse bairro que estamos preparando as
instalações, imagino que vai dar para você tirar, já no início, uma média de R$
5 a
6.000,00 (cinco a seis mil reais) mensais. Porém, a depender do seu trabalho,
ultrapassará os dez mil, fácil, fácil. O povo nunca falha para nossos pedidos
em nome de Jesus.
Juro que quase me cagava de
emoção quando ele falou quanto eu poderia ganhar. Na merda que andava, seria
capaz de dar banho numa cascavel, escovar os dentinhos e colocar uma pijaminha
pra ela dormir, somente para ganhar o jantar. Por esse dinheiro, não vou deixar
um pecador na face da terra, em nome de Jesus ou de quem quer que seja.
-Você quer uma resposta
definitiva quando? Perguntei com um brilho nos olhos, demonstrando que já me
considerava um aprendiz de teologia.
-Eu vim aqui só pra isso e, se
você concordar, seguiremos amanhã cedo para Valadares, pois, quanto mais rápido
você começar a estudar e gravar a bíblia na mente será melhor para todos, uma
vez que os fieis lêem a bíblia todos os dias, não entendem nada e nós é que
temos que dar as explicações. E, o que não entendemos também, inventamos
qualquer história cheia de metáforas, eles continuam sem entender nada, mas,
para que não deixem transparecer que são burros, agradecem em nome de Jesus e
vão embora com as mesmas dúvidas, achando que devem estudar mais. Nessa hora
você deve dar aquele sorrisinho e dizer; Filho, interpretar o livro sagrado
requer anos e anos de estudo. Mas, em nome de Jesus, um dia você chegará lá!
Arrumei minhas melhores
roupas, alguns livros e na manhã seguinte já estávamos seguindo no carro de
Renato. Aliás, Pastor Renato, pois, ele determinou que a partir daquele
momento, nosso tratamento seria como Pastor Renato e Pastor Francisco. Isso
para ir criando um hábito, pois quando lá chegássemos eu seria apresentado como
tal e não poderia haver escorregões que pudessem gerar desconfianças. Apenas,
para os fieis, seria dito que eu passaria 30 ou 60 dias de retiro profundo,
pois estava vindo de outro pais especialmente para nossa igreja e seria
necessário essa penitência com reflexões solitárias ( na verdade seria meu
período de aprendizagem. E, como eu já havia morado uma época na Califórnia,
poderia me sair bem quando fosse perguntado a respeito da minha vida lá fora. E
para dar um toque maior de veracidade, eu falava fluentemente o inglês.
Chegamos as 22:00 hs. em
Valadares, Renato levou-me para uma casa de campo que ele tinha nos arredores
da cidade, lugar super confortável, onde fui recebido por uma senhora bem
velhinha que fazia às vezes de caseira, cozinheira e confidente de Renato.
-Dona Maroca esse é o Pastor
Francisco que vai ser o responsável pela nossa nova igreja. Ele ficará
hospedado aqui durante o seu retiro de estudos para iniciar a missão. Contamos
com a sua ajuda e discrição nessa preparação, já que a senhora conhece a Bíblia
como ninguém e sabe todos os esquemas da nossa igreja, pois vem trabalhando
conosco desde que o Pastor Inácio implantou seu primeiro templo religioso anos
atrás.
-Muito prazer, meu filho! Seja
bem vindo em nome de Jesus!
-Amém irmã! Obrigado pela
acolhida em nome de Jesus!
Quando olhei para o lado,
Renato disfarçava para não dar uma gargalhada, por ver minha primeira falação
como um verdadeiro irmão.
Ele seguiu para sua casa na
cidade e eu fui tomar um banho, jantei um pratinho rápido que D. Maroca fez e
fui direto para a cama descansar, pois, no dia seguinte, começaríamos os
estudos que, com certeza, não seriam fáceis.
Acordei as 06:00 horas com um
monte de livros no meu criado mudo, provavelmente colocados por D. Maroca para
que eu começasse logo cedo meus afazeres. Levantei, escovei os dentes, lavei o
rosto e fui para a sala onde já havia na mesa um gostoso café com frutas e
iguarias que há muito eu não saboreava.
-Bom dia Pastor Francisco!
Tome o seu café e pode ir cuidar dos seus estudos e reflexões. Qualquer
dificuldade que o senhor tenha, pode me chamar que estarei sempre às ordens em
nome de Jesus.
-Obrigado irmã! Pode ficar
tranqüila que estou sentindo-me à vontade e procurarei incomodá-la o mínimo
possível.
Voltei para o quarto e
sentei-me em uma escrivaninha, peguei a Bíblia Sagrada e comecei devora-la com
a maior atenção possível, procurando adaptar-me aquele português casto e as
citações e colocações verbais não usuais em nossos dias.
Os dias foram passando sem que
eu fosse até a cidade, pois se fazia necessário que, quando fosse apresentado
aos irmãos já tivesse postura e conhecimentos para angariar a confiança
necessária, demonstrando ser um verdadeiro e competente ministro da igreja.
Renato vinha diariamente visitar-me no início da noite, fazendo-me perguntas e
explicações sobre os cultos e pregações. E D. Maroca, com a máxima boa vontade,
durante o dia tirava minhas pequenas dúvidas nas interpretações de alguns
versículos. Percebi que em algumas situações ela ficava meio perdida e começava
a me enrolar com frases filosóficas. Nessas horas eu me lembrava das palavras
de Renato com relação a atender os irmãos, mesmo os deixando confusos e
pensando que o assunto está além dos seus conhecimentos e das suas imaginações.
Maroca aprendeu bem essa lição, mas, eu não engolia essa farofa. Agradecia,
porém me virava para encontrar a resposta certa.
O fato é que com 28 dias já
estava com a Bíblia lida e relida por diversas vezes e, em nome de Jesus, eu
conhecia a história religiosa de Adão a Bispo Macedo, passando por todos os
papas, bispos e cardeais, discípulos, seguidores, apóstolos, profetas, hereges,
etc.
Cafarnaum, Jericó, Jerusalém,
Judéia, Roma, Egito e outras plagas pareciam que eu já tinha até morado por lá.
Sabia decorado e salteado até os assentamentos desérticos das fugas. O mar vermelho
era como se tivesse surfado pelas suas águas antes mesmo de Moisés abrir a
passagem salvadora. Estava sentindo-me apto e competente para fazer uma
pregação e deixar meus irmãos de bocas abertas e impressionados em meu nome e
no nome de Jesus. Se duvidasse eu estava capaz de recitar o Novo e o Velho
Testamento de traz pra frente e de frente pra traz. Já sentia tanta raiva do
Satanás, que se me deparasse com ele, encheria de porrada e o mandaria de volta
para os quintos dos infernos. Até Renato, ou melhor, Pastor Renato ficou
impressionado com minha desenvoltura, porém ele sabia que eu era fera quando me
dedicava a fazer algo.
Finalmente foi marcado o dia
para minha apresentação oficial. Pastor Renato enfeitou lindamente a sua
igreja, reuniu todos os irmãos da sua paróquia e das outras e, à noite, com uma
lotação de mais de mil fieis, fui chamado à frente, exposto e apresentado como
o mais novo Pastor da Igreja da Salvação Divina, responsável pelo novo templo
que passaria a funcionar no dia seguinte, em nome de Jesus.
As Aleluias eram faladas e
gritadas, mescladas de palmas e Glorias a Deus, além de outras frases
religiosas que demonstravam a alegria da minha chegada.
Depois de alguns minutos,
Pastor Renato pediu silencio e passou-me o microfone para eu dizer algumas
palavras aos irmãos que, mesmo com o silencio reinante, ouvia-se ainda algumas
louvações ao Senhor.
Pastor Renato havia preparado
uma performance milagreira com um homem que se passaria por aleijado, que só
conseguia andar, mesmo lentamente, com o auxílio de duas muletas e o amparo de
mais alguém.
Cumprimentei a todos,
agradeci a acolhida e comecei uma pregação com uma segurança como se fosse um
velho e experiente pastor. Aí, como estava previsto, sai da multidão um homem
arrastando-se amparado por pessoas que deviam ser familiares, gritando
desesperadamente: Irmão! Irmão! Cure-me em nome de Jesus! Faça com que eu volte
a andar e me livre dessa maldição de Satanás em nome de Jesus!
Pedi que trouxessem o homem
até perto de mim e, como havia combinado com Renato, coloquei a mão esquerda em
sua cabeça, solicitei que o ajoelhasse e comecei a fazer orações em voz alta e
mandando o Satanás se afastar daquele irmão que pertencia a Deus e que ficaria
bom em nome de Jesus. Quanto mais eu gritava minhas palavras sacro/santas, mas
os irmãos gritavam aleluias, améns, vivas Jesus, etc.
Já começando há ficar um pouco
nervoso pedi silencio a todos, fiz uma cara dramática e disse: Afastem-se todos
dele que, em nome de Jesus, ele se levantará e se livrará dessa força do mal.
-Levante-se
irmão! Levante-se em nome de Jesus, que Ele é mais poderoso que Satanás! Força e fé em nome de Jesus!
Com
o silencio que fazia na igreja naquele momento, podia-se ouvir o ruído da queda
de um pedaço de algodão no chão. Todos passaram a olhar o homem com a maior
expectativa sobre o que poderia acontecer.
O
homem, fazendo um esforço sobre-humano, suor escorrendo pela testa e pelo
rosto, suspendeu a perna direita até meia altura e... pela força que fazia,
soltou um peido bem alto e fedido, provocando uma gargalhada geral dos fieis.
-Calma
irmãos! Esse ruído e mal cheiro é o Demônio abandonando o seu corpo! Falei
rápido tentando dominar a situação, devido o vexame que estava acontecendo.
-Não
é não Pastor. Pela força que fiz me caguei todo em nome de Jesus!
-Não
suportando mais aquela farsa que estava complicando minha vida logo no primeiro
dia, já não pensei mais em nada e piquei a Bíblia com toda força na cabeça do
sacana e disse;
Anda
filho da puta pecador! Você já viu alguém se cagar em nome de Jesus?
Aí,
para surpresa geral, o homem levantou-se com um salto e saiu correndo pela
igreja a fora, deixando um rastro de merda e gritando bem alto: Vá bater em sua
mãe, seu desgraçado. Vá bater na puta que lhe pariu!
E,
como eu jamais esperava, todos se levantaram histericamente sacudindo as mãos
para os céus, berrando assustadoramente: Milagre! Milagre! Milagre! Milagre em
nome de Jesus!
Nesse
momento, por ordem de Pastor Renato, o coral começou a entoar um hino de
louvação, ele pegou o microfone e deu por encerrado o culto, quando eu,
totalmente desnorteado, me retirava para a sala dos fundos, sobre as palmas e
gritos de Aleluia dos fieis.
Fiquei
alguns minutos esperando Renato, decidido a voltar para minha cidade depois
desse desastre inesperado. Puto porque já estava cheio de planos com primeira
arrecadação de dízimo.
Quando
ele entrou e fechou a porta eu fui logo dizendo: Eu não quis dizer nada, mas
sabia que essa droga de milagre logo no primeiro dia ia terminar dando em
merda, como, literalmente, deu.
Calma,
Pastor Francisco! Você foi genial!
-Pastor
Francisco um cacete! Eu estou num estado de nervos retado, pois o homem não
procedeu como tudo foi combinado e me deixou nervoso e embaraçado perante
todos.
-Vou
lhe confessar uma coisa. O rapaz que contratamos para o milagre teve que viajar
e não veio. E eu só fiquei sabendo depois que lhe coloquei para falar e não pude
avisá-lo. Aquele homem que apareceu é realmente aleijado e foi trazido por sua
família pela primeira vez em nossa igreja, esperando que pudéssemos cura-lo. E
você, energicamente, fez com que ele vencesse o medo psíquico e voltasse a
andar. Eu me demorei um pouco para chegar aqui porque estava recebendo uma
gorda doação dos seus familiares, que mandaram agradecer a sua poderosa força
em nome de Jesus. E foram colocar gelo na cabeça do irmão que está andando
muito bem, mas com um galo da porra na testa.
Ao
ouvir isso, desmaiei e, quando voltei a mim, estava deitado em casa e na minha
cabeceira, estava D. Maroca oferecendo-me um prato de sopa para refazer minhas
forças.
Foi
assim que me transformei em um pastor evangélico. Hoje, juntamente com o
atual Bispo Renato, comandamos dezenas
de igrejas pelo Estado a fora, tudo isso em nome de Jesus!
Aleluia
irmãos! O Senhor é meu Pastor e nada me faltará nunca mais!
*Escritor ( Do livro: Vida Louca - 2003)
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