Antonio Nunes de Souza*
Eu nasci e morei uma parte da minha vida numa pequena cidade
do interior, mais atrasada que noiva na hora do casamento. Tecnologia quando
chegava por lá já estava obsoleta. Basta dizer que no dia da instalação do
primeiro orelhão telefônico, teve até banda de música e discurso do prefeito.
E, para a decepção da multidão aglomerada na praça da Matriz, na hora de fazer
a ligação inaugural, o desgraçado ficou mudo porque esqueceram de trazer as
fichas, e ainda desabou uma forte chuva, dispersando a boquiaberta e orgulhosa
platéia, que há dias vinha se vangloriando de estar entrando na era da
comunicação!
Televisão, nem pensar! Nos conformávamos com
nossos rádios, que estrondavam descargas quando queríamos ouvir as emissoras da
capital, e apitavam mais do que os guardas da Av. Paulista na hora do rush,
quando ousávamos coloca-los em ondas curtas!
Não existia luxo. Todo mundo andava de sandália
japonesa (hoje a famosa havaiana) ou então tamancos e chinelos! Sapatos e
roupas melhores, tirando as autoridades, só usava-se nas festividades da
padroeira, N. S. dos Aflitos (até a santa de lá parece que foi escolhida a
dedo). Nas noites do novenário as quermesses rolavam soltas e os namoros
também, através de uma brincadeira chamada “telegrama do amor”. Os mais tímidos
compravam um formulário na barraca da paróquia, mandavam mensagens para as
pessoas que lhes interessavam e aguardavam as respostas. Essa maneira ingênua e
pura até que funcionava a contento!
O bom é que todo mundo era praticamente igual.
Tinha que se fazer um nivelamento por baixo, pois, a pobreza era a grande
maioria. Isso proporcionava uma intimidade geral, facilitando tudo pra todo
mundo. O preconceito era raro, uma vez que quase todos tinham alguma ramificação
de parentesco. Se não era sanguíneo, era através de batizados, crismas e uniões
matrimoniais!
A maior desvantagem para as mulheres era que
tinha, pelo menos, dez para cada homem. Tornando-se uma disputa ferrenha por
qualquer, literalmente, pé de chinelo!
Não que lá só nascia criança do sexo feminino. A
razão era que, como a cidade não tinha e não oferecia condições de trabalho, os
rapazes quando completavam maior idade, geralmente se mandavam para S. Paulo ou
Rio, em busca de um futuro melhor nas maiores capitais do país!
Normalmente só ficavam aqueles que as famílias
tinham alguma condição econômica, quer seja na área do pequeno comércio, faixas
de terras com plantações de subsistência, ou algumas vaquinhas leiteiras!
Se alguém me perguntasse qual era a fonte de renda
daquele lugar, juro que não teria uma resposta para dar! Pois, nem mulher
rendeira existia por lá. Com certeza, só ganhou o status de cidade em função de
interesses políticos de um deputado da região, que lá aparecia somente nas
épocas das eleições e, com esse beneficio, transformou o lugar em seu curral
eleitoral. Na cidade só se votava em Dr. Durval e nos candidatos que ele
indicava!
Eu, com 16 anos fui morar com uns parentes
distantes no Rio de Janeiro, onde trabalhava de doméstica para pagar a
hospedagem e a noite estudava, pois, minha intenção era algum dia me formar. E,
graças a Deus, consegui meu intento fazendo o curso de direito!
Somente hoje, dezenas de anos depois, após
conhecer e conviver em outros centros, posso avaliar com segurança a condição
paupérrima que imperava em minha cidade. Se na procissão você lá do fundo
gritasse: Oh pobre! Pode ter certeza que
todo mundo virava pra atender!
Carros só existiam quatro: Um do padre (padre não
tem salário, não ganha nada, mas sempre mora bem, tem prestígio e leva uma vida
boa), um do juiz, um do médico e outro da prefeitura. Tirando o da prefeitura,
que era uma Kombi, dois eram fusquinhas velhos e comprados de segunda mão e o
outro um Opala branco cheio de pontos de ferrugens, parecendo que foi
confeccionado pelas bordadeiras do Ceará. Não levei em consideração a caçamba
velha de seu Edinho do caminhão que, além de carro do lixo, era utilizado em
todo tipo de transporte pesado na cidade!
Por não contarmos com uma rádio local, tínhamos um
serviço de autofalantes, com algumas cornetas em diversos postes, tocando
músicas e fazendo propagandas das poucas casas comerciais, oferecendo coisas
para trocas e vendas, anunciando aniversários, funerais e, principalmente,
fazendo ofertas de músicas que os rapazes e moças dedicavam aos seus paqueras.
Mas, sem citar nomes. Eram sempre usadas frases como: “Alô, Alô alguém que
estava ontem com a saia azul e a blusa roxa (que combinação desgraçada), com
muito amor alguém que estava de chapéu preto lhe oferece essa linda canção, na
voz melodiosa de Nelson Gonçalves. Aí o locutor colocava no pick-up o 78
rotações que era o sucesso do momento: “Boneca de Trapo”. Ou então era alguém
que havia terminado o namoro e oferecia a sua ex (na esperança de voltar): “Meu
mundo caiu” na voz de Maíza Matarazzo. Porém, mesmo com as omissões de nomes, todos sabiam de quem se tratava, pois, a
distração maior da cidade era comentar a vida dos outros. Lá, até os cofres não
tinham segredo, pois, os próprios donos saiam contando!
Embora não mais tivesse parentes morando lá, uma
vez que meus pais eram oriundos de outro estado e apareceram naquele fim de
mundo por uma razão que até hoje desconheço, e também não tive irmãos,
atacou-me uma enorme nostalgia, resolvendo voltar para rever o lugar que passei
minha infância e parte da minha puberdade!
Como hoje sou viúva, chamei o meu filho Jorge, que
tem 21 anos, para me fazer companhia e ir dirigindo o carro! Marcamos nossa
partida para dois dias depois!
Nesse
momento, vendo a paisagem através da janela do carro, estou rememorando todos
esses fatos que marcaram muito a minha vida, pensando no impacto do meu
encontro com a velha cidade, meus antigos amigos e colegas de escola, bastante
ávida para saber o que o destino traçou para eles e para a pequena cidade em
que vivem! Mergulhada nesse gostoso devaneio, terminei adormecendo
profundamente!
-Mamãe, acorde!
Estamos chegando em Raulândia!
Ao
abrir os olhos, vislumbrei ao longe a torre da Matriz, e não nego que meu
coração acelerou descompassado, prevendo a grande emoção do meu reencontro com
o passado!
As
sensações e surpresas vividas nos dois dias que lá passei são inenarráveis. Me
senti a menina de tranças de outrora, sorrindo sozinha com tudo que via e os
olhos sempre lacrimejando motivados pelos encontros com as pessoas e a velha
arquitetura, mais destruída que preservada!
Estamos
no caminho de volta, onde faço uma reflexão de como é importante voltarmos
eventualmente a nossa terra, rever os velhos amigos, acompanhar a evolução da
cidade e rememorar a doçura da infância. Creio que quem isso nunca fez, está
perdendo a grande oportunidade de revitalizar sua alma enchendo-a de felicidade!
*Escritor-Historiador e poeta!
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