Antonio Nunes de Souza*
-Cara,
não sei o que aconteceu. Trabalhamos ontem o dia todo e ele não estava sentindo
nada de nada! Até na hora em que fechamos o escritório, saímos dando risadas
(você sabe como ele era gozador), quando ele fez uma observação de sacanagem
com José, aquele rapaz que trabalha com a gente. Brincamos e fomos cada um para
o seu lado. Quando acordo hoje, puta merda, recebi a notícia que ele dormiu e
durante a noite apagou!
-Aninha,
sua mulher, disse que não ouviu zorra nenhuma, mermão. Acredita até que ele não
sentiu nada, pois, não fez nenhum movimento brusco, senão ela teria acordado na
hora. É duro cara! A vida da gente não vale merda nenhuma, você se arromba de
uma hora para outra e a música não toca!
-E
afinal já descobriram a causa da morte?
-Nada
cara! Presume-se que foi coração, pois, ele fumava desde menino e acredito que
foi isso. Não dizem que essa merda mata aos pouquinhos? Acho que o último
pouquinho dele foi ontem. O engraçado de tudo, engraçado não, o mais curioso é
que o cara nunca sentia nada. Porríssima nenhuma! Nunca vi o sacana doente em
quase dois anos de convivência. Vivia até me sacaneando que eu era jovem e todo
dia tinha uma porra de uma doença. Ele azarava com minha renite alérgica e meu
estômago. Tempo todo dizendo piadas a respeito!
-Será
que vão fazer necropsia?
-Qualé
mermão. Porra nenhuma! Ele tem uma caralhada de médicos amigos, além de dois
cunhados da área, e a mulher não vai deixar retalhar o cara. Vão arranjar um
atestado de óbito qualquer, e enterrá-lo na maior. Daqui a pouco você ver
chegar uma cacetada de Rotarianos para a sentinela!
-E
ele era Rotariano?
-Se
era? Tá por fora mermão! Era do Rotary há uma porrada de tempo. Não era chegado
a coisas convencionais, mas, fazia ou fez partes dessas zorras todas. Rotary,
CDL, Associação comercial, clubes sociais, etc., achava que valia a pena, não
só para servir, como também para ser servido!
-Que
horas vai ser o enterro?
-Às
16 horas. O escritório da empresa já está fechado, já avisei aos funcionários e
acredito que o pessoal vai aparecer no velório e acompanhar o enterro!
-Ele
encarnava com os mínimos detalhes, mas, a turma gostava dele. Até eu, no começo
andei as rusgas. Porém, com algum tempo, percebi que por mais sacana que ele
estivesse sendo, suas intenções eram as melhores possíveis. Quando aprendi a
lidar com o cara, o sacana morre. Que ironia retada!
-André,
eu vou descendo, preciso ir na Telebahia pagar a conta do telefone!
-Calma
Lucinho! Daqui a pouco eu saio de fininho com você. Dois minutos no máximo. Eu
também não quero ficar mais tempo agora, pois, vai chegar o pessoal da
funerária para apanhar o corpo, colocar no caixão e levar para a capela de
velório e, nessa hora, sempre tem uma choração retada, e eu prefiro não ver
essa parte!
André
e Lucinho saíram a francesa, descendo a Praça Adami, um seguindo para a
Telebahia e o outro para o escritório da Sosaúde (empresa responsável pelas
nossas vendas externas), para avisar a inesperada tragédia!
A
casa era um reboliço só. Um entra e sai terrível. Só os parentes da minha
mulher enchiam todos os cômodos. Fora aquele caminhão de costureiras e dondocas,
que entrava pela porta da frente e saía pela porta do fundo, fazendo da minha
casa um verdadeiro corredor da morte. Minha sogra fazia aquela cara de dor, que
ela é especializada em fazer em todos os enterros que vai e, para me sacanear,
toda hora vinha junto à cama ajeitava minas roupa e as mãos. Aquilo tudo me
deixava puto da vida, ou melhor, puto da morte. Principalmente quando, sem nem
pra que, se eu não estava fedendo, ela disfarçadamente derramou um vidro de
água de colônia pelo meu colarinho e aquela merda mais gelada do que eu,
escorreu pelas minhas costas e foi parar bem na regada da minha bunda. Não digo
que aquilo me matou de ódio, pois, morto eu já estava. Mas, com certeza, não
merecia essa humilhação vulgar nas minhas últimas horas na terra!
Meus
filhos eu pouco os via em função da confusão reinante. Moisés porque estava
pela rua providenciando fazer as coisas habituais dessas ocasiões fúnebres,
seguindo a orientação dos familiares. E Giuliano estava estático em pé na
porta, fumando e sem dizer nada, como é o seu procedimento incógnito e estranho
na maioria das vezes. Quanto ao meu irmão, este chorava quase que
continuadamente, demonstrando como é sentimental. Sua capacidade de
sensibilização é tamanha, que é capaz de matar uma pessoa, e depois passar dias
e dias lamentando porque o coitado morreu. É o rei do paradoxo!
Pra
completar minha angústia, volta a aparecer minha sogra, desta feita acompanhada
de um padre, que dizendo umas palavras em latim, salpicava água benta em meu
corpo (principalmente em minha cara). Digo com sinceridade, se pudesse tomaria
aquele ferrinho que ele molhava e sacudia em mim e enfiava todinho na bunda
dele!
Naquele
momento fui perceber, nitidamente que quando se morre, ninguém respeita mais as
suas vontades anteriores, ou desejos antes determinados. Eu sempre disse que o
dia que eu morresse, não queria padre e missas e o meu caixão deveria ser
fechado imediatamente e assim permanecesse, para ninguém fixar a minha imagem
de morto. Sempre fui uma pessoa alegre e brincalhona, e gostaria de ser
lembrado dessa forma!
Nada
disso estava acontecendo. Tudo era exatamente ao contrário do que sempre
planejei!
Até
os vendedores de carros da Ilha dos Ratos (praça em frente à minha casa),
entravam e saiam para me olhar, como se eu fosse um animal em exposição. Tinha
uma mulher no canto cochichando com outra, que meus olhos estavam meio abertos.
Fiz a maior força para arregalá-los, só para meter um susto nas sacanas, mas,
infelizmente, não consegui nem pestanejar. Passou uma hora como um relâmpago
para mim. E uma eternidade para os que estavam ali por forças familiares,
afetivas, comerciais, curiosas e sociais, tendo de participar de uma cerimônia
bastante desagradável para qualquer um!
Felizmente,
a operação da funerária foi bem rapidíssima. Com muita prática e
profissionalismo, encaixotaram-me, colocaram-me no carro no meio da aglomeração
de curiosos e, mais que depressa, eu já estava no velório em cima de uma mesa
de mármore, cercado de enormes castiçais com enormes velas acesas, que ardiam
suas chamas balançando para os lados ao prazer dos ventos, como se fossem mãos
nos movimentos tão comuns nos shows artísticos, dando-me adeus pela minha
partida. Mas, nem por isso deixavam de exalar aquele odor horripilante de vela
queimada!
Já
me sentia mais calmo devido estar quase sozinho, quando num passe de mágica,
reaparece minha sogra trazendo nos braços um enorme buquê de flores, começando
a me enfeitar com rosas, avencas, margaridas, angélicas, dálias e outras mais.
E, quando acabou essa operação, senti-me ridículo, parecendo que tinha
tropeçado e caído em um tabuleiro de florista e desmaiado. Naquela hora eu pedi
a Deus o direito de dizer apenas uma única palavra: Poooorraaaa!
Lamentavelmente, não fui atendido!
Tudo
aquilo parecia uma vingança. Talvez porque em vida nunca fiz o que ela queria,
e ela estava se aproveitando da minha morte para deitar e rolar nas suas
vontades. Aí começaram a chegar às pessoas. Já era três da tarde e, como tudo
combinado, o meu enterro seria às 16 horas. Os amigos e os obrigados sociais
foram chegando, para testemunharem o meu sepultamento. Os grupinhos iam se
formando dentro da capela, onde eu podia vislumbrar claramente os familiares.
E, na varanda e arredores dos carros e lado de fora, aglomeravam-se os amigos
em bate papos sobre o ocorrido, intercalando as conversas, com as habituais
piadas de velórios!
Nesse
instante, vejo entrar na sala da capela os funcionários da empresa. O primeiro
a se aproximar de mim foi o José que, cabisbaixo e sério, olhou para mim e
pensou: Vá com Deus seu Antonio! Minha dúvida e não saber amanhã se faço o
depósito no Banco do Brasil ou na Cooperativa de crédito (ele sempre se
confundia com os depósitos)!
Quase
morro novamente, de tanto rir intimamente, pelo seu senso profissional naquele momento.
Ele era estranhíssimo. Fazia tudo que lhe mandassem. Fazia errado claro, mas
nunca deixava de fazer. E, se déssemos duas ordens ao mesmo tempo, ele ficava o
dia todo nervoso sem saber qual faria primeiro e terminava sem fazer nenhuma!
Em
seguida encosta Mary, e, fixando os seus olhos em meu rosto, diz para ela mesma:
Você não será esquecido por mim. Aprendi a gostar de você logo que começamos a
trabalhar juntos, e sempre considerei um amigo que tive. Somente nunca entendi
porque passou a me perseguir quase que diariamente. Será que fiz algo sem
sentir ou de propósito, que o feriu bastante? Vou fazer um retrospecto e, se
encontrar uma razão, fique certo que lhe pedirei perdão. Apesar de tudo, terá
sempre minha admiração, não só como patrão, como também o coroa charmoso que
você foi.
Achei
estranho esse pensamento dela com relação a perseguição, mas, se existiu isso
que não percebi ou me lembro, bons e fortes motivos devem ter sido. Só o tempo
dirá (o que para mim não mais interessava)!
Antes
de Mary afastar-se, aproxima-se Lúcia que, sem nada dizer, deixa passar em sua
mente o pensamento, que embora jamais teve ou teria algo comigo, adorava e se
sentia possuída quando eu a olhava cheio de desejos pecaminosos!
Sai
o caixão em direção ao outro lado da rua (onde fica o cemitério), carregado
pelos amigos e parentes. Olho em volta e vejo pela última vez a minha família
reunida. Jamais me esquecerei das lágrimas de sentimento e saudade que desciam
pelos rostos da minha mulher e dos meus dois filhos!
*Escritor,
Historiador, Cronista, Poeta e um dos membros fundadores da Academia Grapiúna
de Letras!
Obs.
Conto do livro “Vida Louca” - 2004
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