Antonio Nunes de Souza*
Nada
melhor que ultrapassar um cinqüentenário de vida, quando se presta atenção aos
costumes, hábitos, valores, preconceitos, etc., acompanhando e sendo testemunha
da queda de muitos deles. Uma grande parte desaparecendo e outra até revertida
para conceituações totalmente contrárias às obsoletas e rígidas regras do
passado.
Como
sou homem do interior e de uma cidade pequena, outrora tradicional, baseado
nesses choques de atitudes e reações sociais, resolvi imaginar como seria uma
carta de uma moça do interior, que foi estudar na capital nos anos 60, e uma
atual contando os mesmos fatos.
Salvador,
02 de agosto de 1960.
Querida
mãe, (benção Mãe!)
Como
à senhora bem sabe já se passaram dois meses que estou na capital, em função de
ter completado o ginasial e fazer o curso científico para enfrentar o
vestibular. O pensionato que tio Augusto arranjou é ótimo e tem muitos estudantes
de diversas cidades e alguns funcionários de bancos. A comida é ótima e, graças
a Deus, tenho um quarto só para mim (ficou um pouco mais caro, mas me dá mais
liberdade e privacidade.).
Escolhi
o colégio Severino Vieira, que é muito bom, e fica pertinho do bairro da Saúde
e eu vou e volto sem precisar de transporte. Além de fazer economia, ainda faço
um exercício com a caminhada. É uma pena que vocês não me ligam todos os dias
para eu poder matar a saudade. Mas, compreendo que o serviço telefônico é
horrível!
Depois
de dar uma visão como estou vivendo, passei dois dias tomando coragem para
relatar um fato que ocorreu:
-
Porém, pelo amor de Deus não fale com papai, pois não sei como ele reagirá. Ou
até sei perfeitamente, que ele viria aqui me buscar, acabando o sonho de me
formar.
Mãe,
eu conheci um rapaz muito bonito e educado, que estuda no mesmo colégio (ele
faz o terceiro científico e mora na mesma pensão), e começamos a ter um ligeiro
namoro. Coisa simples, apenas uns beijos no rosto e mãos dadas quando vamos
para o colégio. Nada comprometedor.
-Entretanto,
dois dias atrás, aniversário da dona da pensão e todos fizeram uma vaquinha
para comprar bolo, salgadinhos, alguns refrigerantes e uma garrafa de Rum
Bacardi para fazer cuba-libres. A noite foi uma festança, colocaram na radiola
Hi-Fi uns LPs de Waldir Calmon, Ray Conniff, Silvio Mazzuca, Miltinho, Ângela
Maria e Gregório Barrios. Dançamos até uma hora da manhã.
Eu,
como sabes, não posso beber nada que fico logo tonta. E, por insistência de Raul
(meu namorado), terminei tomando uns Cubas na hora de brindar e no decorrer da
festa tomei mais um, forçada pela alegre turma que estava uma brasa.
Mainha
foi aí que aconteceu o inesperado. Eu fiquei tontinha e Raul foi me levar até o
meu quarto que fica na parte de cima e a festa era no térreo. Ele entrou no
quarto me amparando pela cintura e eu com o braço em volta do seu pescoço. Aí,
quando ele me colocou na cama, caímos os dois juntos e começamos a dar risadas
e passamos a nos beijar.
Somente
por carta estou tendo coragem de lhe contar essa tragédia. Perdoe-me, mamãe! O
fato é que eu já não estava mais em mim e Raul também não parava de me alisar e
o resultado é que ele me tirou de casa. Deflorou-me mamãe (que vergonha meu
Deus). Quando eu vi aquele pequeno sangramento entre minhas pernas e no lençol
foi que notei o que aconteceu. Estava tão tonta que nem senti alguma dor como
todo mundo diz que sente.
Comecei
a chorar e soluçar, deixando Raul assustado com a situação, sem saber que
atitude tomar. Ele mandou eu ir tomar um banho, me deu um beijo na testa,
saindo do quarto muito pálido e nervoso.
Pela
manhã, acordei sem coragem de descer para tomar café e ir para o colégio, pois,
para mim todos já sabiam o que aconteceu ou iam descobrir somente olhando na
minha cara. Depois de algum tempo, resolvi descer e enfrentar a situação.
Todos
estavam sentados a grande mesa, alegres e rindo, fazendo comentários sobre a
festa, porém, ninguém fez alguma alusão a Raul ter ido me levar para o quarto.
Parece até que ninguém nem percebeu. Apenas minha consciência de culpa é que me
deixava com a cara meio escabreada e um sorriso amarelo. Olhei e não vi Raul e
imaginei que deveria ter saído.
Fui
para o colégio, não encontrei com ele e ambos temos evitado falar sobre o
ocorrido.
Hoje,
bastante trêmula e nervosa, estou escrevendo pedindo seu perdão e orientação
para o que devo fazer. Mas, pelo amor de Deus, não fale com papai, senão ele é
capaz de me matar. Jamais eu teria coragem de lhe contar essa tragédia
pessoalmente. Estou morrendo de vergonha.
Diga
a painho que não precisa mandar dinheiro essa quinzena, pois eu economizei e
vai dar até o fim do mês. Perdoe-me mamãe, eu não sou digna de vocês!
Da
sua pobre e desesperada filha que aguarda uma resposta urgente,
Regina
Maria
Com
a evolução dos tempos, suponho como relataria o fato, uma garota da atualidade:
Salvador,
02 de agosto de 2012.
Diga
aí velha!
Salvador
é a maior zorra do mundo. Se soubesse antes não perderia meu tempo estudando
nessa minha cidade careta. Teria vindo pra cá desde o maternal. O AP que estou
é super maneiro e a galera é toda pra cima. Alguns estudam, outros só fazem
curtir. Meu colégio é devagar, pois preferi um que não é tão exigente, para não
fundir meu juízo e não perigar perder ano.
Conheci
um cara, colega de cafôfo, que é um gato. O nome dele parece que é Raul, mas
todo mundo lhe chama de Rê. O bicho é sarado, bunda crocante e dança pra
cacete! Tem uma tatuagem tribal na bundinha que é uma graça! Estamos ficando,
mas... de leve!
Ontem foi
aniversário da coroa dona da pensão e a galera resolveu armar uma balada
quentíssima para comemorar. Cada um deu uma grana e compramos cerveja, pinga e
limão (para caipirinha), conhaque e, alguns mais chegados, descolaram uns
baseados para a festa rolar mais solta (fique fria que eu não estou nessa. Se
muito, dou uns tapinhas).
Velha,
foi o maior bunda Lê Lê
até a madruga! Pintou um DJ amigo da galera que bombou legal e rolou de Axé a
Rock in Roll, com variações de alguns raps. Até arrocha pintou no pedaço para a
esfregação ser justificada. Forró e as porras mais!
Lá pras tantas,
eu já estava pra lá de Bagdá (talvez no Iraque) e arrastei Rê para meu quarto e
transamos até o sol raiar. Pô! Estou com uma puta dor de cabeça que nem fui à
aula hoje. Rê ainda está chapado lá na minha cama. Agora mãe, ninguém mais vai
me chamar de careta. Sou mulher igual a qualquer uma delas.
Diga a meu pai
que aumente a mesada, pois o preço do ante concepcional está lá em cima e os
convites para os ensaios do Ilê, Olodum, Timbalada, Araketo, Mascarados e
outros, estão caros pra caralho e, com grana curta, é foda estudar aqui.
Inclusive, preciso comprar umas roupas pra não ficar parecendo uma mocoronga
suburbana do interior.
Aqui
é massa real, mamãe! Estou adorando! Mas, por favor, vejam se não ficam
pentelhando todo dia, ligando para meu celular. Se continuar essa encheção de
saco, vou mudar o número.
Vou
me mandar porque Rê está chamando, pois vamos curar o bode na praia do Porto da
Barra.
Beijoca
velha,
Mara
*Escritor (Blog VIDA LOUCA – antoniodaagral26@hotmail.com)
Um comentário:
O curioso é que apesar da quilométrica distância entre as duas épocas, o "tirar de casa" aconteceu em ambas. E, na verdade, acho que a única diferença mesmo, dentre outros modismos, foi o pudor da primeira garota ao revelar a circunstância à mãe.
Um abraço!
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