Antonio
Nunes de Souza*
Nada melhor que ultrapassar quase dois cinquentenários
de vida, quando se presta atenção aos costumes, hábitos, valores, preconceitos,
etc., acompanhando e sendo testemunha da queda de muitos deles. Uma grande
parte desaparecendo definitivamente, e outras até revertidas, para conceituações
totalmente contrárias às obsoletas e rígidas regras do passado!
Como sou homem do interior e de uma cidade
pequena, outrora muito tradicional, baseando-me nesses choques de atitudes e
reações sociais, resolvi imaginar como seria uma carta de uma moça do interior,
que foi estudar na capital nos anos 60, e uma moça na atualidade contando os
mesmos fatos!
Salvador, 28 de fevereiro de 1960.
Querida mãe, (abença Mãe!)
Como à senhora bem sabe, já se passaram dois meses
que estou na capital, em função de ter completado o ginasial vim fazer o curso
científico para enfrentar o vestibular. O pensionato que tio Augusto arranjou é
ótimo, e tem muitos estudantes de diversas cidades e alguns funcionários de
bancos. A comida é ótima, e graças a Deus, tenho um quarto só para mim, que
ficou um pouco mais caro, mas, me dá uma maior liberdade e privacidade!
Escolhi o colégio Severino Vieira, que é muito
bom, e fica pertinho do bairro da Saúde, e eu vou e volto sem precisar de
transporte. Além de fazer economia, ainda faço um exercício com a caminhada. É
uma pena que vocês não me ligam todos os dias para eu poder matar a saudade.
Mas, compreendo que o serviço telefônico é horrível e nos atende muito mal!
Depois de dar uma visão de como estou vivendo,
passei dois dias tomando coragem para relatar um fato que ocorreu:
-Porém, pelo amor de Deus não fale com papai, pois,
não sei como ele reagirá. Ou até sei perfeitamente, que ele viria aqui me buscar,
acabando o sonho de me formar!
-Mãe eu conheci um rapaz um pão muito bonito e
educado, que estuda no mesmo colégio que eu (ele faz o terceiro científico e
mora na mesma pensão), e começamos a ter um ligeiro namoro. Coisa simples,
apenas uns beijos no rosto e mãos dadas quando vamos para o colégio. Nada
comprometedor.
-Entretanto, dois dias atrás, aniversário da dona
da pensão Dona Jacira, e todos fizeram uma vaquinha para comprar bolo,
salgadinhos, alguns refrigerantes e uma garrafa de Rum Bacardi para fazer
cuba-libres. A noite foi uma festança, colocaram na radiola Hi-Fi uns LPs de
Waldir Calmon, Ray Connif, Silvio Mazurca, Miltinho, Ângela Maria, Nelson
Gonçalves e Gregório Barrios. Foi uma maravilha e dançamos até uma hora da
manhã!
Eu, como vocês sabem, não posso beber nada que
fico logo tonta. E, por insistência de Raul (meu namorado), terminei tomando uns
Cubas Libres na hora de brindar, e no decorrer da festa tomei mais um, forçada
pela alegre turma que estava uma brasa!
-Mainha foi aí que aconteceu o inesperado. Eu
fiquei tontinha e Raul foi me levar até o meu quarto, que fica na parte de cima,
e a festa era no térreo. Ele entrou no quarto me amparando pela cintura e eu
com o braço em volta do seu pescoço. Aí, quando ele me colocou na cama, caímos
os dois juntos e começamos a dar risadas e passamos a nos beijar!
-Somente por carta estou tendo coragem de lhe
contar essa tragédia. Perdoe-me, mamãe! O fato é que eu já não estava mais em
mim, e Raul também não parava de me alisar, e o resultado é que ele me tirou de
casa!
-Deflorou-me mamãe (que vergonha meu Deus). Quando
eu vi aquele pequeno sangramento entre minhas pernas e no lençol, foi que notei
o que aconteceu. Estava tão tonta que nem senti alguma dor como todo mundo diz
que sente!
-Comecei a chorar e soluçar, deixando Raul
assustado com a situação, sem saber que atitude tomar. Ele mandou eu ir tomar
um banho, me deu um beijo na testa, saindo do quarto muito pálido e nervoso!
Pela manhã, acordei sem coragem de descer para
tomar café e ir para o colégio, pois, para mim todos já sabiam o que aconteceu,
ou iam descobrir somente olhando na minha cara. Depois de algum tempo, resolvi
descer e enfrentar a situação!
Todos estavam sentados a grande mesa, alegres e
rindo, fazendo comentários sobre a festa, porém, ninguém fez alguma alusão a
Raul ter ido me levar para o quarto. Parece até que ninguém nem percebeu.
Apenas minha consciência de culpa é que me deixava com a cara meio escabreada e
um sorriso amarelo. Olhei e não vi Raul e imaginei que deveria já ter saído!
-Fui para o colégio, não encontrei com ele e ambos
temos evitado falar sobre o ocorrido!
-Hoje, bastante trêmula e nervosa, estou
escrevendo pedindo seu perdão e orientação para o que devo fazer. Mas, pelo
amor de Deus, não fale com papai, senão ele é capaz de me matar. Jamais eu
teria coragem de lhe contar essa tragédia pessoalmente. Estou morrendo de
vergonha!
-Diga a painho que não precisa mandar dinheiro
essa quinzena, pois, eu economizei e vai dar até o fim do mês. Perdoe-me mamãe,
eu não sou mais digna de vocês!
Da sua pobre e desesperada, filha que aguarda uma
resposta urgente,
Regina Maria
Com a evolução dos tempos, suponho como relataria
o mesmo fato, uma garota da atualidade:
Salvador, 28 de fevereiro de 2025.
Diga aí velha!
Salvador é a maior zorra do mundo. Se soubesse
antes não perderia meu tempo estudando meu ginasial nessa minha cidade careta
pra cacete. Teria vindo pra cá desde o maternal. O AP que estou é super maneiro
e a galera é toda pra cima, Alguns estudam, outros só fazem curtir. Meu colégio
é devagar, pois, preferi um que não é exigente, para não fundir meu juízo e não
perigar perder ano!
Conheci um cara, colega de cafôfo, que é um gato.
O nome dele parece que é Raul, mas, todo mundo lhe chama de Rê. O bicho é
sarado, bunda crocante e dança pra cacete! Tem uma tatuagem tribal na bundinha
que é uma graça, Estamos ficando nua boa, mas... de leve!
Ontem
foi aniversário da coroa dona da pensão, e a galera resolveu armar uma balada
quentíssima para comemorar a zoeira. Cada um deu uma grana e compramos cerveja,
pinga e limão (para caipirinha), conhaque e, alguns mais chegados, descolaram
uns baseados, para a festa rolar mais solta (fique fria que eu não estou nessa.
Se muito, dou uns tapinhas)!
Velha, foi o maior bunda Lê Lê até a madruga! Pintou um DJ
amigo da galera que bombou legal, e rolou de Axé a Rock in Roll, com variações
de alguns raps e funks. Até arrocha pintou no pedaço para a esfregação ser
justificada. Forró e as porras todas!
Lá
pras tantas, eu já estava pra lá de Bagdá (talvez no Iraque) e arrastei Rê para
meu quarto e transamos até o sol raiar. Pô velha! Estou com uma puta dor de
cabeça, que nem fui à aula hoje. Rê ainda está chapado lá na minha cama. Agora
mãe, ninguém mais vai me chamar de careta. Sou mulher igual a qualquer uma
delas!
Diga
a meu pai que aumente a merreca da mesada, pois o preço do ante concepcional
está lá nas cabeceiras, e os convites para os ensaios do Ilê, Olodum,
Timbalada, Araketo, Mascarados e outros, estão caros pra caralho e, com grana
curta, é foda estudar aqui. Inclusive, preciso comprar umas roupas pra não
ficar parecendo uma mocoronga suburbana do interior. Ontem inclusive foi a
abertura do carnaval e parada foi de foder!
Aqui é massa real, mamãe! Estou adorando! Mas, por
favor, vejam se não ficam me pentelhando e azarando todo dia, ligando para meu
celular. Se continuar essa encheção de saco, vou mudar o número trocando o
chip!
Vou me mandar porque Rê está chamando, pois, vamos
curar o bode da balada na praia do Porto da Barra, que vai ter um banho de mar
ao som do trio de Armandinho!
Beijoca coroa, sua filha,
Regininha
*Escritor, Historiador, Cronista, Poeta e um dos
membros fundadores da Academia Grapiúna de Letras!